por: Dr. Roberto Cardoso
Durante a elaboração da nossa tese, precisamos estudar um pouco sobre a provável origem histórica da meditação. Hoje, divido com vocês algumas das descobertas que fizemos a respeito.
Ao falamos sobre meditação, é automático recorrermos aos relatos de tradições filosóficas orientais, uma vez que foram as culturas chinesa e hindu que melhor relataram e descreveram as práticas meditativas durante a história da civilização.
Johnson, em seu livro (Do Xamanismo à Ciência. Uma história da meditação, Editora Cultrix, 1990), apresentou amplo levantamento histórico sobre o tema, encontrando descrições precoces do método, tanto em textos taoístas quanto em textos hindus. Recomendo, muito, a leitura desse ótimo livro. Segundo ele, na antiga China, por volta de 300 a.C., a literatura taoísta, com mestres como Lao-Tzu e Chuang-Tzu, já expunha exercícios meditativos, de forma sistematizada. A literatura mística do norte da Índia, entre 1500 e 1000 a.C., também já apresentava técnicas de meditação.
Todavia, buscar a ascendência da meditação é uma empreitada penosa. Nesse intuito, também se realçou Johnson, quando revisou os aspectos históricos do tema, situando a presumível origem dos primeiros estados alterados de consciência, que foram provavelmente obtidos por indução espontânea. Acreditava este autor, que a descoberta do fogo, o exercício da caça, a experiência sexual e o trauma, poderiam ter sido os fatores que primeiramente conduziram ao estado meditativo espontâneo, provocando experiências naturais de estados alterados de consciência, o que poderia ter acontecido há cerca de oitocentos mil anos.
Referindo-se ao estado alterado de consciência como “êxtase”, e com as experiências meditativas sendo chamadas de experiências “extáticas”, Johnson escreveu, sobre o fogo, que “…A focalização [visual] das chamas bailarinas por longas horas, com exclusão de todos os outros estímulos sensoriais, bem poderia ter produzido estados extáticos, cabendo às chamas afastar a consciência do seu padrão de luta-fuga para um estado alterado, mais calmo, de repouso em vez de ansiedade…”. A conjectura sobre o papel do fogo na origem dos primeiros “estados meditativos” espontâneos é compartilhada por alguns conhecidos meus e, confesso, até mesmo por mim.
Segundo Johnson, o caçador da pré-história também poderia ter experienciado estados meditativos espontâneos, uma vez que “…o caçador, ao se aproximar da caça, precisava varrer da mente os pensamentos ansiosos, como se não estivesse ali…”. Em outro trecho, afirma que “…Isso incluía a identificação com os animais a serem caçados, de modo a se tornarem indiscerníveis do meio ambiente e assim serem bem-sucedidos como caçadores habilidosos…”, para o que precisavam “…silenciar na mente todos os pensamentos [dito] humanos, entrando num êxtase, de modo a …[se colocar]… fora da nossa humanidade comum…”.
O próprio ato sexual poderia ter tido seu papel na gênese de estados alterados de consciência, talvez dando origem às atuais escolas tântricas meditativas. Disse Johnson que “…o ato físico [sexual] também pode ter contribuído para isso, uma vez que, no abandono do orgasmo, os seres humanos se tornam extáticos, colocando-se temporariamente fora de si mesmos…”
As doenças graves, e os acidentes traumáticos, do mesmo modo, podem ter levado a mudanças espontâneas no estado de consciência de nossos antepassados. Segundo Johnson “…incapazes de suportar, por mais tempo, a dor ou o perigo percebido, [os indivíduos] escapam para o êxtase, ou para um experiência [dita] fora do corpo…”. Mais adiante, afirma que “…para os que sobreviveram, a possibilidade de retornar a estados assim, e até o desejo de fazê-lo, deve ter sido atraente e provavelmente conduziu ao desenvolvimento de meios meditativos para consegui-lo…”.
Johnson foi muito enfático, quando apresentou o realce com que eram tratados os estados que chama de “extáticos”, nas culturas de nossos antepassados. Para tentar espelhar o marcante posicionamento do autor, aqui selecionamos dois pequenos trechos ilustrativos de sua publicação:”…As culturas xamanísticas dão o mais alto valor a essas experiências de auto-transformação extática. Ainda que possam ocorrer em anos [de idade] muito tenros, proporcionam ao indivíduo um contato inesquecível com o [dito] divino e com o seu poder, iniciando-o, assim, na idade adulta. Sem esse contato, a pessoa era considerada incompleta, incapaz de aproveitar as principais fontes do poder para o bem-estar…”
”…Por infelicidade, porém, [hoje] não levamos [mais] as pessoas a essas experiências, nem por meio da forma coerciva e inescapável da iniciação, como a que se praticava em Elêusis, nem por meio daquela que se exigia de todos os jovens [tribais]… …na busca da visão xamânica, onde não alcançar o êxtase significava ridículo social…”.[/i]
O mesmo autor advertiu que a meditação, em nenhum momento, teria sido “descoberta”, mas sim que “…os estados meditativos devem ter se desenvolvido no decorrer de um longo período de tempo, e não foram inventados num momento específico…”. No entanto, também segundo Johnson, qualquer que tenha sido a evolução histórica do método, em alguma ocasião os nossos ancestrais descobriram uma nova forma de alcançar estados alterados de consciência, sem o uso das substâncias (plantas) psicoativas. Nas situações pregressas, tais plantas eram utilizadas pelos antigos xamãs, em cerimônias sagradas; ou como o complexo soma/haoma dos povos indo-arianos; ou, ainda, dos compostos utilizados nos antigos ritos taoístas ou nos mistérios gregos de Elêusis. Prováveis dissidentes dos antigos xamãs, [b][u]os primeiros meditadores foram aqueles que buscaram exercícios capazes de funcionar como auto-indutores dos estados alterados, sem o uso de substâncias exógenas, e isto possivelmente os manteve discriminados por um longo tempo, especialmente por atentar contra o poder do xamã.
Outros aspectos históricos foram apresentados por Benson, Beary & Carol (The Relaxation Response. Psychiatry 1974;37:37-46), localizando citações acerca de práticas meditativas na cultura ocidental, em escritos cristãos, judaicos e muçulmanos, dentre outros. Um método, utilizado para atingir estado alterado de consciência, foi ensinado no tratado cristão intitulado “The Cloud of Unknowing” (século XIV), onde se sugeriu eliminar todas as atividades físicas, distrações e pensamentos, com a ajuda da repetição de uma palavra unisilábica, tal como “love” ou “god”. No século X, um texto (“The Third Spiritual Alphabet), do Frei Francisco de Osuna, já relatava uma técnica de fixação do olhar, com vistas a tornar o praticante “cego, surdo e mudo”, recomendada diariamente, melhorando a capacidade cognitiva e reduzindo o estresse. São João e Santa Tereza, no século XV, descreveram os passos básicos para atingir um chamado “estado místico” (“mystical state”), ignorando as distrações através da prece repetitiva.
Como digo em meu livro, Medicina e Meditação (MG Editores):
“…As técnicas meditativas não pertencem a esta ou aquela cultura, ou a esta ou aquela religião, embora várias delas possam ter sido disseminadas a partir de focos religiosos específicos. É possível meditar na respiração com os budistas sem ser um budista; é possível meditar caminhado com os vietnamitas sem ser um vietnamita; é possível meditar girando com os sufis sem ser um sufi. Na verdade, mesmo em outras comunidades muito antigas já se conheciam técnicas meditativas, como entre os índios americanos e os esquimós. Para se meditar, não é preciso pertencer a alguma religião específica. Não é preciso deixar de pertencer a alguma religião específica. Não é preciso ter religião. Não é preciso, nem mesmo, acreditar em Deus…”
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